segunda-feira, 23 de abril de 2018

A Noite de São Jorge

Na noite do dia de São Jorge, 23 de abril de 1343, estonianos nativos se rebelaram contra seus senhores dinamarqueses e alemães numa tentativa de restaurar a soberania do país.

Povos de língua báltica e urálica ocuparam a Estônia e a Letônia desde fins da Antiguidade, e tiveram contato com emissários cristãos vindos da Alemanha e da Suécia desde o século VII. Os livônios, como coletivamente se reconheciam as tribos locais, continuaram seguindo sua religião nativa, dando ao cristianismo pouca penetração em seu território, embora ambas as crenças coexistissem. A atividade confessional se intensificou no século XII, quando senhores locais começaram a ver nos saxões alemães, cristãos, potenciais aliados contra seus vizinhos semigálios (que habitavam o sul da Letônia e norte da Lituânia), e usaram a religião como forma de atraí-los para seu lado. Não obstante, a prevalência da religião nativa báltica (e também eslávica, nas regiões ao entorno) sobre as tentativas de conversão ao catolicismo romano levaram o Papa Celestino III e seu sucessor Inocente III a convocarem uma Cruzada no norte da Europa.

O chamado do Papa e a resistência dos livônios levaram à formação de uma confederação de senhores e bispos alemães numa ordem de cavalaria, a Ordem Livônia (submetida à já poderosa Ordem Teutônica), com a missão de converter pagãos à força e submetê-los à autoridade papal, e também proteger interesses comerciais alemães na região. Durante todo o século XIII, a Ordem Livônia combateu uma a uma as tribos livônias, mesmo as que estavam sob proteção do rei da Dinamarca, e estabeleceu na região uma nação de facto, unida a bispados feudais formados em decorrência das invasões e quedas de chefes locais.

A tribo dos estonianos manteve algum nível de autonomia sob o Ducado da Estônia, faixa de terra no norte da atual Estônia que ainda estava sob domínio dinamarquês. Mas embora fossem garantidas liberdades individuais (como o porte de armas), os impostos eram abusivos, as relações comerciais desiguais, e privilégios a senhores de terras alemães e dinamarqueses (que tornavam os estonianos, antigos donos das terras, seus vassalos, presos a eles por dívidas irrecuperáveis) eram ultrajantes aos olhos dos nativos. No século XIV, a autoridade dinamarquesa diminuiu com a morte do Rei Cristõvão II, e a Estônia, então pesadamente colonizada por dinamarqueses e alemães, ficou dividida. Foi nesse momento que a minoria nativa - cerca de 2% da população do ducado então - viu que era hora de agir.

Os estonianos viam seu modo de vida entrar rapidamente em vias de extinção à medida em que germânicos cristãos invadiam e colonizavam o território, impondo línguas, religião, e estruturas sociais estranhas. A decisão - cuja autoria não está clara na principal fonte sobre a revolta, as crônicas de Bartolomeu Hoenecke - foi possivelmente uma reação desesperada frente ao destino inexorável do velho povo báltico diante da formidável máquina de guerra organizada pela superestrutura da Igreja Católica e seus aliados alemães.

Na noite de São Jorge de 1343, uma casa sobre uma colina na província de Harria foi incendiada, sinalizando o início da revolta, uma ação coordenada que tinha como objetivo primário o assassinato de todo alemão, homem, mulher ou criança, nobre ou plebeu. Segundo as crônicas, aqueles que os homens da Estônia pouparam foram mortos pelas mulheres, que também se encarregaram de queimar igrejas e monastérios. Rapidamente os estonianos elegeram entre si quatro reis, e sob sua liderança, organizaram um exército de 10 mil pessoas para sitiar a cidade de Reval (atual Tallinn, capital da Estônia, então sob posse dinamarquesa). Conscientes de que seu sucesso se devia ao elemento surpresa, e que a reação seria pesada por parte de alemães e dinamarqueses combinados, os novos líderes mandaram pedidos de ajuda a duques suecos, prometendo Reval ao rei da Suécia. Os duques responderam com promessas de ajuda.

As notícias se espalharam e inflamaram as comunidades estonianas. Na província de Rotália (atual Lääne), os nativos renunciaram ao catolicismo e caçaram os alemães onde estivessem, vitimando talvez 2000 pessoas. O Bispado de Ösel-Wiek também caiu, e em questão de dias os estonianos tinham o controle do Ducado.

Enquanto isso, sobreviventes chegaram ao castelo de Weissenstein, na atual cidade de Paide, então uma fortaleza de fronteira da Ordem Livônia. O Mestre da ordem, Burchard von Dreileben, mandou um cavaleiro, provavelmente estoniano (porque se diz que falava a língua nativa), para convocar os reis rebeldes ao castelo para se explicarem. Os reis, vendo a oportunidade de impedir uma contra-ofensiva alemã, aceitaram, e se deslocaram em uma pequena comitiva a Weissenstein, com a promessa de segurança e hospitalidade por parte da Ordem. Além do Mestre, outros notáveis da Ordem Livônia compareceram à conferência, incluindo o bispo de Reval, que os rebeldes permitiram passar pelo seu cerco e por todo o território sob seu controle. De fato, os quatro reis e três cavaleiros que os acompanhavam se depararam com um grande número de cavaleiros livônios esperando por eles em Paide.

Em maio, diante do Mestre da Ordem, os reis propuseram se submeter a ela, desde que não tivessem que pagar tributo a senhores estrangeiros - servindo a ordem com homens, armas e recursos quando solicitado. Ao serem perguntados o porquê de tantas mortes de alemães, os reis responderam que qualquer alemão merecia ser morto, mesmo que tivesse apenas dois pés de altura. Von Dreileben considerou um ultraje, recusou os termos apresentados, e exigiu que os reis permanecessem no castelo até que os capitães da Ordem, ele próprio entre eles, encontrassem seus exércitos em campo. Os reis questionaram a ordem, já que lhes havia sido garantida livre passagem de volta. Ao anoitecer do dia 4 de maio, enquanto eram conduzidos aos seus aposentos, todos os estonianos presentes foram assassinados (as crônicas atribuem o ataque à agressão por parte de um cavaleiro estoniano contra o livônio designado para escoltá-los pelo castelo, uma decisão tão estúpida que é desacreditada pela maioria dos historiadores).

Sem líderes, os estonianos foram incapazes de mobilizar uma resistência relevante diante do contra-ataque alemão. Em dez dias, a rebelião já havia sido dominada na Estônia continental, finalmente esmagada nos meses seguintes graças a reforços da Ordem Teutônica vindos da Prússia. Restou apenas um foco de resistência nas ilhas de Ösel (onde igualmente os estonianos nativos reunciaram ao cristianismo e atacaram alemães), derrotado dois anos depois (Burchard von Dreileben esperou o inverno congelar o mar entre as ilhas e o continente para atravessar com seu exército a pé e evitar um perigoso ataque anfíbio).

O auxílio sueco realmente chegou à Estônia, porém 4 dias depois da derrota decisiva dos rebeldes. Vendo os aliados derrotados, e Reval controlada pela Ordem (os dinamarqueses, que já haviam sido derrotados pelos suecos recentemente, temendo perder a cidade, a entregaram aos alemães), os suecos se contentaram em saquear o que puderam nos seus arredores e foram embora. Os estonianos ainda tentaram aliança com príncipes russos, mas um pequeno exército da cidade de Pskov também chegou tarde demais e foi desbaratado. A Ordem Teutônica acabou comprando as últimas possessões dinamarquesas na Estônia, tornando-se senhora de todo o Ducado.

O fim da Rebelião da Noite de São Jorge significou o fim da nobreza báltica nativa, restando aos povos da região a submissão a governos estrangeiros, que se alternaram entre alemães, poloneses, suecos, lituanos e russos pelos séculos seguintes. Quando os primeiros documentos impressos na atual língua estoniana (uma língua urálica afim do finlandês, em nada relacionada às línguas bálticas ao sul) surgiram no século XVI, já eram textos de teor religioso cristão, dando a entender que nos cerca de 200 anos entre a rebelião e a ressurgência do paganismo báltico e o advento da imprensa, as conversões foram ostensivamente bem sucedidas. Em 1943, no aniversário da Revolta, e em plena Segunda Guerra Mundial, a União Soviética, então suserana dos estonianos, divulgou localmente as crônicas, numa tentativa de inflamar o povo local contra os invasores alemães (a Estônia, anexada pelos soviéticos três anos antes, balançava no sentido de apoiar a invasão nazista).

A Estônia se tornou independente da Rússia em 1918, caindo sob domínio soviético em 1940, recuperando sua independência em 1991. O neopaganismo estoniano (baseado na antiga estrutura religiosa da Estônia medieval) é a oitava religião mais popular no país.

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